A adoção de um sistema de informação hospitalar (HIS) é, sem dúvida, um marco na jornada de transformação digital de instituições de saúde. Entretanto, o verdadeiro desafio não está apenas na implementação inicial, mas na sustentação contínua dos processos, na aderência dos usuários e na capacidade institucional de manter vivo o projeto ao longo do tempo. A eficácia de um HIS está diretamente relacionada à maturidade da organização, à sua cultura de gestão e à forma como ela lida com mudanças, pessoas e processos.
- O impacto do turnover na gestão hospitalar
Nos hospitais brasileiros, o turnover não é apenas uma preocupação do setor de recursos humanos — é um fator estrutural que impacta diretamente a qualidade do uso do HIS. Profissionais entram e saem da organização com frequência, levando consigo o conhecimento sobre o funcionamento do sistema e os processos que o sustentam. A descontinuidade no uso das funcionalidades e a reconfiguração informal de rotinas geram distorções que se acumulam ao longo do tempo.
Segundo a Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), a média geral de turnover no setor hospitalar privado ultrapassa 20% ao ano, e em cargos técnicos pode ser ainda maior. Esse número, quando aplicado a uma instituição com centenas ou milhares de colaboradores, representa um desafio considerável de gestão do conhecimento.
Implicações práticas:
- Novos colaboradores frequentemente são treinados por colegas que já perderam o domínio correto dos processos, gerando um efeito de “telefone sem fio”.
- O HIS, inicialmente parametrizado para refletir boas práticas, passa a ser subutilizado ou distorcido por desconhecimento das equipes.
- A cultura de adaptação informal substitui a governança de processos estruturada.
- Governança de processos: a ausência silenciosa
Em muitos hospitais, após a implantação do HIS, há uma tendência natural de tratar o sistema como algo “resolvido”. A equipe volta o foco para outras demandas e não há continuidade nos fóruns de decisão, nem atualização dos processos frente às mudanças no dia a dia da instituição.
A ausência de uma governança institucional específica para a gestão do HIS— com papéis, responsabilidades e rotinas definidas — leva à perda gradual da sincronia entre os processos reais e os registrados no sistema.
Boas práticas recomendadas:
- Criação de um Comitê Gestor de Sistemas, com representantes de áreas assistenciais, administrativas e de TI da instituição.
- Estabelecimento de uma agenda fixa de revisão de processos, validação de indicadores e propostas de melhoria.
- Mapeamento e reavaliação dos fluxos operacionais a cada modificação relevante na rotina hospitalar.
- Cultura digital e resistência à mudança
A transformação digital no setor da saúde não é apenas uma questão de adquirir sistemas, mas de transformar a forma como os profissionais compreendem e usam a informação. A cultura analógica, ainda presente em muitos hospitais, resiste ao uso de sistemas de informação, preferindo anotações manuais, controles paralelos e decisões baseadas na experiência individual.
Esse comportamento reduz drasticamente a eficácia do HIS, já que o sistema depende de dados estruturados, consistentes e registrados em tempo hábil para gerar resultados confiáveis.
Segundo o estudo da HIMSS (Healthcare Information and Management Systems Society), mais de 65% dos hospitais na América Latina ainda operam com baixa maturidade digital, especialmente nas áreas assistenciais, onde o HIS é frequentemente subutilizado ou visto como um “mal necessário”.
Soluções possíveis:
- Implantar programas de mudança cultural e comunicação interna que mostrem o impacto positivo do HIS nos resultados assistenciais.
- Criar incentivos para o uso correto do sistema, como indicadores de performance atrelados à adesão dos processos no HIS.
- Valorizar líderes clínicos e administrativos que atuem como embaixadores da transformação digital.
- Capacitação contínua e educação corporativa
É comum que, durante a implementação do HIS, sejam realizados treinamentos intensivos. Porém, com o tempo, esses esforços não são mantidos, e novos colaboradores entram sem receber capacitação formal. A educação passa a ser informal, baseada em tentativa e erro ou na transmissão oral, o que compromete a padronização dos processos e o uso pleno do sistema.
Recomenda-se a adoção de trilhas de aprendizagem contínuas, com conteúdos modulares, acessíveis digitalmente, e alinhadas aos diferentes perfis de usuários. Ferramentas como plataformas EAD, microlearning e vídeos curtos podem ser extremamente eficazes nesse contexto.
Além disso, é essencial que o hospital institua uma política de requalificação periódica e que o fornecedor do HIS atue como parceiro nesse processo, oferecendo conteúdos atualizados e suporte ativo à capacitação com tutoriais, manuais e ambientes de educativos.
- A tecnologia como reflexo da maturidade institucional
É importante compreender que o HIS, por mais robusto que seja, não substitui a necessidade de uma gestão madura, com processos claros e bem definidos. A tecnologia potencializa a organização que a utiliza, mas também evidencia suas fragilidades.
Se o hospital não possui uma cultura de registro, de análise de dados e de responsabilização por resultados, o HIS se torna apenas um repositório burocrático, sem impacto real na tomada de decisão.
Indicadores comuns de má utilização do HIS:
- Relatórios inconsistentes, gerando decisões inseguras.
- Duplicidade de controles manuais e digitais.
- Subutilização de módulos e funcionalidades.
- Alto volume de chamados de suporte para dúvidas operacionais básicas.
Conclusão
O HIS hospitalar deve ser entendido como uma plataforma estratégica de apoio à gestão, e não apenas como uma ferramenta técnica. Sua eficácia está diretamente ligada à forma como o hospital conduz sua governança, capacita seus profissionais e estrutura seus processos internos.
A sustentabilidade do uso do sistema exige um compromisso institucional contínuo, com responsabilidades bem definidas entre hospital e fornecedor. Quando esse alinhamento acontece, o HIS não apenas organiza o cotidiano da operação, mas se torna um alicerce para a melhoria contínua, a eficiência assistencial e a tomada de decisões baseada em dados concretos.